Franz Kafka nasceu no dia 03/07. Esse ano completaria 141 anos.
Em 2024, no dia 03/06, completaram 100 anos da sua morte.
Não é segredo nenhum (principalmente desde a edição dos Diários) que eu sou completamente apaixonada pelo Kafka. Por isso estava tão animada para meu projeto de leitura de junho: ler entre a data de sua morte e a data de seu aniversário (coincidentemente 1 mês) o box que eu tenho com 3 livros dele: A Metamorfose, O Processo e O Castelo. Confesso que do Kafka já tinha lido apenas A Metamorfose, algumas cartas, contos aqui e acolá, Um Artista da Fome, Carta Ao Pai, O Foguista, mas não tinha lido romances além da Metamorfose uma única vez na faculdade que sinceramente não é a melhor experiência de leitura para esse livro. Por isso decidi começar com ele.
Foi curioso reler A Metamorfose tantos anos depois e já sabendo tanto da história - e principalmente depois de receber tantos e tantos memes de omg gregor samsa hiiii - mas principalmente foi importante a releitura depois dos Diários e entender todos os temas abordados por Kafka em seu livro. Não é um romance muito longo nem complexo, ele é denso por se passar em um curto período de tempo e ser tão intenso mentalmente. Vivemos praticamente dentro da cabeça de Gregor Samsa durante suas mudanças e reflexões. Terminei a leitura rapidamente amando ainda mais o livro. Decidi encarar O Processo.
Eu já sabia que seria uma leitura mais difícil, o livro é maior e conhecidamente mais denso. Ele narra a história de K., funcionário de um banco que no dia do seu aniversário e 30 anos descobre que está sendo preso e processado sem saber o real motivo. O livro parte da luta de K. para provar sua inocência, os embates com a justiça e com a burocracia. Os diálogos são longuíssimos, a história tem vários detalhes, voltas, mudanças, personagens que vão entrando e saindo, fui lendo mais devagar e só retomei o ritmo nos últimos 3 capítulos. A história é insana, cativante e ácida, mas a escrita longa e prolixa chega a ser cansativa, mas acho que fazia parte do estilo de Kafka.
O Castelo foi um desafio maior. Confesso. Detestei. Ainda não terminei. Uma amiga disse que quando eu for para Praga vai fazer mais sentido, decidi ir lendo aos poucos e terminar no meu próprio ritmo. K. (sim, novamente) é um agrimensor que vai parar em um vilarejo comandado por um Castelo que segue suas ordens cegamente. Por ser um estrangeiro se depara com questões de burocracia, recepção, etc. Pelo menos é o que eu li até agora rs.
Eu poderia ficar horas e horas e horas falando de temas em comum que aparecem nas obras e na vida de Kafka. Como por exemplo a relação dos personagens K. em O Processo e O Castelo com as mulheres e suas dependências emocionais e para resolver seus problemas e a própria relação de Kafka com suas namoradas e mulheres de sua vida. Achei justamente O Processo e O Castelo livros com temas mais próximos entre si. A quantidade de vezes que Kafka reclama de burocracia e do seu trabalho em seus Diários não é de se espantar que ele tenha escrito livros falando justamente sobre isso, criticando a falha da burocracia, como a exigência do trabalho em todos os momentos da vida, como ele nos adoece e é desnecessária. A burocracia dos sistemas governamentais, a regra e cegueira da religião (Kafka era judeu e extremamente participativo na comunidade judaica de Praga, mas não deixava de ser extremamente crítico à religião como doutrina), os entraves burocráticos e as voltas e reviravoltas para voltarmos sempre ao mesmo ponto (alô toda vez que a gente precisa resolver uma coisinha simples rs). O Castelo e O Processo dialogam muito entre si nas críticas à burocracia, ao trabalho formal, à religião como doutrina, ao governo, a dependência de Kafka das mulheres e o sufocamento do sistema. São duas obras extremamente prolixas, abafadas, intensas, cheias, com longos diálogos e reflexões. Não poderiam ser mais Kafka.
E aí temos A Metamorfose. Que destoa completamente. Se O Processo e O Castelo falam dos temas que Kafka gosta de criticar e questionar, acho A Metamorfose talvez sua obra quase mais pessoal. Por mais que nela a gente ainda encontre seus temas clássicos como a crítica ao trabalho e ao sistema, eu vejo A Metamorfose como um sonho-biográfico dele. Com toda sua relação complexa e complicada com seu pai (exposta longamente em Carta Ao Pai). Sei que em A Metamorfose o mais conhecido seja justamente o fato de Gregor Samsa acordar transformado em um inseto - e vou sempre bater na tecla que não é uma barata, é um besouro!!! - mas é nítido que esse é um livro que retrata as relações familiares de Kafka. A tentativa de uma relação próxima da mãe e da irmã, o distanciamento e a necessidade de agradar o pai, o trabalho como essa tentativa de agradar e atender às expectativas do pai, a rejeição e decepção dele e a sensação de isolamento dentro da própria família. Ler A Metamorfose depois de ler Os Diários e Carta Ao Pai é entender que esse é um livro desabafo, um desejo de levar um vida diferente da sua, de não ser mais Caixeiro-Viajante ou viver agradando o pai, mas ser um inseto ou qualquer coisa, para ter uma vida só sua, mesmo que isso signifique a morte no final.
Para a Oficina de Escrita Criativa que participei precisávamos imaginar e pensar para quem enviaremos cartões postais. Eu pensei justamente no universo de A Metamorfose. Como seria a vida de Gregor Samsa antes de mudar sua vida pelo trabalho de seu pai? Como era sua vida antes da transformação? Saíram esses dois pequenos trechos unindo tudo que já li de cartas, diários, contos, romances:
Para: Gregor Samsa
Como seria a vida de Gregor Samsa antes de virar um caixeiro-viajante? E durante suas viagens a trabalho antes da metamorfose? Pensando nas cartas de amor de Kafka, na Metamorfose, nas Cartas Ao Pai, nos Diários.
“Meu querido Gregor,
Espero que o tempo esteja bom em B. e o hotel seja de seu agrado. Aqui não há sol desde o dia de sua partida - conto os dias para ver vocês dois novamente. A cada partida sua fico buscando entender os motivos e ficar mais tranquila, mas será que há algo que apazigue um coração apaixonado saudoso?
Contando cada pedaço de dia para te ver,
Sempre sua, J.”
“Meu querido irmão Gregor,
Por aqui a casa segue com sua vida igual. Mamãe instalou a escrivaninha no seu quarto, perto da janela. Na primavera entrará bastante luz, será de seu agrado. Aqui os dias seguem molhados e a rua não se vê seca há uma semana. Papai disse que não vou ao conservatório, melhor me acostumar. Vi J. na rua. Com uma criança loura e rechonchuda. Parecia feliz.
Volte logo.
Sua irmã, Grete”.
Ler Kafka é sempre uma emoção, uma revoada de coisas, sentimentos e intensidades. Saio sempre transformada e mais encantada por ele. Preciso terminar O Castelo e superar o bode que atravesso enquanto ando por essas muralhas. Até lá, Franz segue ocupando um espaço especial no meu coração, principalmente com seu besouro e suas escritas mais pessoais.