Foi durante as férias do ano passado que criei coragem de abrir as 836 páginas dos Diários de Sylvia Plath que ficavam me encarando eternamente na prateleira. Eu nunca tinha lido A Redoma de Vidro. Na verdade eu nunca tinha lido nada sobre ela. O que eu sabia sobre Sylvia era o que todo mundo sabe sobre ela: que ela se matou colocando a cabeça dentro do forno. Ler o Diário dela pra mim foi um exercício de não julgar a vida de alguém pela forma como ela morreu, ainda mais quando estamos falando de suicídio e saúde mental.
Sylvia manteve diários constantemente dos 11 anos aos 30, quando morreu. A edição que eu li tem reunidos de 1950, quando ela estava se preparando para sair da casa da mãe em Wellesley para a faculdade em Massachusetts, o período no Smith College, o início da vida adulta, o casamento até 1962 quando já era professora e escritora e a vida em Londres.
É um Diário. Ou seja, Sylvia anota desde rabiscos de poemas, desenhos, cotidiano, sentimentos, experiências com encontros, sua rotina, o dia a dia no trabalho (quando ela trabalha na casa de uma família durante as férias de verão eu me senti assistindo um filme, tudo poético demais!). Ela não só narra o que acontece na sua vida, ela carrega com seus sentimentos, impressões e a poesia de seu olhar sobre sua própria vida. Ela se abre completamente e se expõe sem medo de errar na dose.
Em uma frase que grifei umas 5 vezes, ela diz “É impossível ‘capturar a vida’ se a gente não mantém diários.”. Esses diários foram traduzidos dos originais que estão no Smith College, onde ela estudou - além de fotos de Sylvia. Com um porém: o último diário, logo antes de sua morte com detalhes de seu relacionamento com Ted foi queimado e destruído por ele. Ou seja, nunca saberemos o que de fato aconteceu. Existem cartas que detalham que o relacionamento deles era tóxico e abusivo, mas esse último diário talvez fosse a chave para entender o gatilho que levou Sylvia a colocar seus filhos em um quarto fechado com a janela aberta para ventilar e colocar sua cabeça no forno. Ela já não estava mais com Ted, já estava cansada das traições e coisa do tipo, mas para o diário ter sido destruído por ele eu inevitavelmente fico queimando de curiosidade. E de ódio por ele.
Durante seu período na faculdade Sylvia intercala seus comentários de estudos, poesias, primeiros encontros, paixonites, casos que não vão a lugar nenhum, desejos, classes, trabalhos, rotinas, dia a dia. Durante os estudos Sylvia foi convidada a ser editora da revista Mademoiselle e chegou a morar em Nova York. O que era um sonho logo se mostrou algo completamente diferente do que ela imaginava e causou uma reviravolta na sua vida. Tudo isso é retratado em A Redoma de Vidro (semana que vem nesse canal rs).
Tudo isso com angústias e dores de uma jovem de 20 anos. E são nessas brechas e nuances que a gente começa a entender as suas questões de saúde mental que a levaram a tentar o suicídio no primeiro ano de faculdade com uma overdose - e outras tentativas nos outros anos. Ela passou seis meses em uma instituição psiquiátrica, fez tratamentos com eletrochoque, se recuperou e retornou aos estudos se formando com louvor em 1955. Importante ressaltar que isso só foi possível com a ajuda de Olive Higgins Prouty, uma escritora que financiou a estadia de Sylvia no hospital e a bolsa que ela tinha e arcava com suas despesas na faculdade.
Depois de se recuperar e se formar no Smith conseguiu uma bolsa integral em Cambridge na Inglaterra, continuando a escrever poesia e a publicar no jornal Varsity. Foi lá, em fevereiro de 1956 que conheceu o poeta inglês Ted Hughes, em uma festa de lançamento. Sylvia definiu como “paixão imediata”. Se casaram 4 meses depois. Tudo isso é relatado no diário, seus primeiros meses na Inglaterra, as viagens pela Europa, se apaixonar por Ted, o início do relacionamento, o casamento, a visita da mãe à Inglaterra, a lua de mel na em Paris e na pequena casa alugada na Espanha e o retorno aos Estados Unidos.
Nesse início da vida de casados Sylvia relata a dificuldade de manter o trabalho na faculdade e o trabalho criativo escrevendo poesias, a vida social, atender a semináriao, a vida com Ted e tudo isso. Plath acaba trabalhando como recepcionista de uma clínica psiquiátrica nesse período e atendendo a seminários durante a noite. Anne Sexton encorajava Sylvia a escrever mais de uma perspectiva pessoal e feminina. Acho que temos muito a agradecer aqui, já que foi nesse período que Plath começou a levar seus poemas e sua escrita de forma mais séria e dedicada.
Acabam voltando à Inglaterra quando descobrem a gravidez - e eu sinceramente só recomendam que leiam tudo que Sylvia escreveu sobre a gravidez e o desejo de ser mãe porque algumas coisas são tão pessoais, detalhadas, doloridas, intensas, bonitas, que não quero estragar com a minha visão de alguém que não deseja ser mãe - e ela publica seu primeiro livro de poesias.
Em 1961, depois de ter um aborto espontâneo em sua segunda gravidez - que há quem acredite que foi causado por Hughes já que em uma carta dois dias antes Sylvia disse que Ted bateu nela - Plath discorre sobre o assunto em diversos poemas de seu segundo livro e é marcada profundamente sobre o acontecimento. Esse passa a ser um tema constante em sua escrita, tanto nos poemas quando no seu diário. Dá para sentir a dor fisica que ela sentia, e no mesmo ano ela termina de escrever A Redoma de Vidro. O segundo filho do casal nasce, e eles começam a cultivar abelhas. Juro, ela fala muito sobre isso - principalmente em poesias.
Em 1962 ela descobre que Ted tem uma amante e as coisas começam a degringolar. Ela tem um acidente de carro, que descreve como uma tentativa de suicídio. Sylvia escreve compulsivamente boa parte dos poemas que seriam publicados em Ariel, postumamente, e se separa de Ted. Vai morar sozinha com seus filhos no mesmo prédio que Yeats tinha morado, o que considerou um bom sinal.
Enfrentou o pior inverno dos últimos 100 anos em 1963 sozinha em outro país com dois filhos pequenos, sem telefone para se comunicar com a mãe ou amigos e sua depressão voltou, mesmo fazendo tratamento e acompanhamento psicológico há anos. Ela publicou “A Redoma de Vidro” com o pseudônimo Victoria Lucas.
Ela estava em um episódio depressivo há seis ou sete meses, continuava a trabalhar e a cuidar dos filhos. Sofria com insônia, tomava remédios durante o dia e a noite. Emagreceu muito e estava falando com seu psiquiatra que prescreveu alguns antidepressivos. Ele sabia que ela estava em risco e tentou de tudo leva-la para um hospital já que ela morava sozinha com duas crianças pequenas. Com tentativas frustradas conseguiu uma enfermeira para acompanha-la em casa. Foi essa enfermeira que encontrou Plath morta em casa ao chegar para trabalhar. Ela havia tampado a ventilação entre a cozinha e os quartos e seus filhos estavam isolados e protegidos. Na sua lista de afazeres do dia: “ligar para Dr. Horder” seu psiquiatra.
Ted Hughes queimou o último diário de Sylvia que ajudaria a compreender o final. Ele disse que não gostaria que seus filhos lessem aquilo. Também perdeu outro diário e um romance inacabado de Sylvia. Me doi saber que até o fim ele controlou ela.
Ler os diários de Sylvia é doloroso. Muitas vezes eu me identificava como uma jovem de 20-e-tantos-anos. Tem coisas universais, de quem escreve, quem cria, quem sofre de doenças mentais. Aconteceu muito durante a leitura. Mas não deixa de ser um diário que ajuda a compreender a depressão de uma das maiores escritoras que tivemos - levada precocemente, pedindo por ajuda, abandonada pelo marido. Sylvia poderia ter feito muito mais. Estava fazendo e criando muito mais. Só não teve tempo. Os tempos eram outros, as mulheres eram tratadas como histéricas, os fármacos eram diferentes. Fico pensando quando de Sylvia não era também uma bipolaridade mal diagnosticada ou algo do tipo, ou quando ela teria de qualidade de vida hoje em dia. Mas na época não deixa de ser as confissões e mergulho pela mente de uma escritora com uma poesia nos dedos e olhos bonitos sobre o mundo. Uma mulher dominada pelo marido, pelo patriarcado. Que nem sabia direito se queria casar e ser mãe. Mas tinha que fazer isso. Que criava e escrevia por necessidade de sobrevivência. É uma leitura dolorosa muitas vezes, mas me fez compreender muito sobre literatura, sobre a época, sobre Sylvia e sobre mim.
Sylvia mantinha um diálogo consigo mesma nos seus Diários. Era uma maneira de conversar com sua cabeça e tentar entender o que estava passando ali dentro, não só de manter um registro físico dos acontecimentos do dia. Sylvia era obsessiva, perfeccionista, detalhista. Disciplinada. Tem diversos comentários de comidas e receitas, comentários ácidos e irônicos, pensamentos extremamente feministas se formos considerarmos a época, uma batalha interna e constante sobre o que ela queria ser e o que ela achava que deveria ser (muitas vezes no papel mãe+esposa x escritora+poeta). Ainda acho que não podemos apenas definir a vida e escrita de Sylvia apenas pelo seu suicídio e depressão, mas são coisas que permeiam toda sua vida. Ela passa todos esses anos de diários buscando se entender. Assim como nós.
✷ÉCOUTERescutei
Semana passada mergulhei de cabeça em 2 dias no podcast Death Of An Artist sobre a Ana Mendieta. Ela é o tipo de artista que merece uma newsletter e uma dedicação inteira sobre ela. A Ly Takai disse algo que concordo muito, de não falar de mulheres artistas no passado já que temos pouco espaço na arte, ainda mais no caso de Ana com uma morte tão horrível e misteriosa. Para começar a entender o que envolve essa história recomendo ouvir antes o podcast do Modus Operandi que conta a trajetória de Ana até conhecer Carl Andre e o Death Of An Artist traz em 6 episódios detalhes da noite e do relacionamento com depoimentos de conhecidos, áudios, testemunhos do caso policial, o julgamento, etc. É em inglês, mas vale muito. Tem um livro também que ainda não encontrei para ler. Acho que vale aqui o que eu disse mais cedo sobre Sylvia sobre não definir a vida e o trabalho de uma artista pela sua morte, mas nesse caso, como falamos de um possível caso de feminicídio é importante falarmos de violência contra mulher e o apagamento da história da mulher na arte, o silenciamento do mundo da arte na época e como Carl foi protegido pelos seus pares.
✷REGARDÉassisti
Acordei hoje com a notícia da morte de Gena Rowlands. Ano passado quando estava no processo de entender o interior do meu livro novo que estou escrevendo me recomendaram assistir “Uma Mulher Sob Influência” do John Cassavetes. Assisti com o caderninho do lado, celular desligado e olhos atentos. Eu não sei bem o que senti. Muitas coisas. Tudo. A atuação de Gena é das mais brilhantes, fortes e sensíveis que já vi. O monólogo, ela dançando, no sofá. Tudo, tudo, tudo. Eu não poderia recomendar mais. É o interior de uma mulher que mais me marcou para entender o que eu gostaria de colocar na personagem. Jamais conseguiria chegar nas nuances e delicadeza e potência de Gena, mas fico feliz de saber que colocarei um pouquinho dela nas minhas palavras, da forma que for. E como sempre, o privilégio que é, vivermos ao mesmo tempo que alguém tão incrível e inspiradora como ela. Queria cancelar tudo e passar o final de semana mergulhada nela - mas sei que minha cabeça vai derreter. Lembro de em certo momento do filme olhar para Mabel e ir me reconhecendo aos pouquinhos. Postei uma vez nos stories e um amigo respondeu falando que eu me parecia com ela. Perguntei se fisicamente ou emocionalmente rs (ele disse que ambos, mas prefiro não discorrer além disso)






✷QUELQUECHOSEqualquercoisa
Fui ontem ao balé com meus amigos no Theatro Municipal de São Paulo. Assistimos aos espetáculos BIOGLOMERATA e Pensamento Cintilante do Balé da Cidade de São Paulo. Fazia tempo que não ia ao Theatro ver balé e orquestra. Foi incrível ver os meninos entrando no Theatro pela primeira vez e terem essa experiência nova. Foi incrível ver a orquestra em sinfonia com o theremin, um dos primeiros instrumentos eletrônicos criados, os figurinos, especialmente de bioglomerata que mais me tocou. Saí do Theatro com aquele quentinho no peito que uma noite de arte, cultura e amigos dá. Às vezes esqueço que São Paulo tem tudo isso para nos oferecer (por 12 reais gente. 12 reais). Sobre técnicas de balé sei lá o que dizer achei tudo lindo diferente incrível babado uau eu apenas não entendo nada achei tudo maravilhoso acordei querendo ser bailarina e querendo ver mais espetáculos.
✷POÉSIEpoesia
separei um trecho que escrevi no livro logo depois que assisti “Uma Mulher Sob Influência”, o contexto é indiferente, o livro ainda não seguiu muito, mas os primeiros passos estão aqui:
{sabia que ele diria isso
agradece a previsibilidade
e a chance de silêncio}
e decide
ir tomar um banho
enquanto ele é
lentamente
engolido
pelo edredom
ela
sozinha
{enfim}
tira peça
por
peça
sentindo o ar gelado
pinicar
sua pele
os pelos arrepiam
e ela fica assim
respirando
e sentindo a pele gritar
todo seu incômodo
começa a encher
a banheira
dobra suas roupas
e fica sentada no vaso
vendo a água
envolta em vapor
cair ruidosamente
e ir aumentando o volume
o som cada vez mais
abafado
o vapor
um abraço quente
na sua pele fria
que gritava
agora chora
suor
molhada
um pé de cada vez
senta devagar
sentindo cada parte sua
se aquecer
tronco
braços
cabeça
mergulho
silêncio
fica assim
engolida pela água
e pelo silêncio
o máximo que aguenta
tira a cabeça da água
devagar
de olhos fechados
fica assim
a cabeça encostada
o corpo largado
e sente a água ir esfriando aos poucos
as bolhas de sabão murchando
a pele enrugando
e pela primeira vez em dias
fica sozinha
com sua presença
respira fundo
tentando preencher
o vazio do peito
com o vapor morno
e a umidade do ar
até ser interrompida
com batidas na porta
alguma piada sobre ela estar bem
uma risada provocativa
{sua própria voz
rindo}
e sai da água
deixando nela
todo suor
sujeira
resquícios
e
a sensação de que
vai ficar tudo bem
até breve!