Algumas semanas atrás eu fui na Submundo, uma festa de funk que começou em Campinas e tem algumas edições em São Paulo. Fui e tipo, fiquei no front, cantei várias, alucinei, dancei, cheguei em casa quase 7 horas da manhã, queria ver vários djs do line. Passei a semana ouvindo playlist e pensando no set do dj blakes que eu acabei perdendo tópico sensível e no d.silvestre que eu vi de pertinho e mudou minha vida. Tudo isso seria impensável para a Camila de 15 anos atrás. Ouvir funk? Absurdo. Ir em um rolê de funk? Mais absurdo ainda.
Eu cresci em uma cidade majoritariamente católica (talvez hoje esse dado tenha mudado mas fiquei com preguiça de pesquisar) e muito muito conservadora. Por mais que eu tenha estudado em escola pública e tenha aprendido a dançar malha funk no auge dos meus 12 anos como todos da minha geração, o funk pra mim era algo muito fora da minha realidade e aqui vem o importante dessa edição da newsletter: era muito carregado de preconceito. Realmente, a música é dos anos 90, mas na minha cabeça criada em uma cidade extremamente conservadora, com colegas extremamente conservadores (gente eu usava aliança de compromisso), em um meio que só valorizava alguns tipos de música específicos, na bolha emo no seu auge ou só playboy dondoca, o funk era som de preto e favelado. E eu tinha que passar longe disso. Mas realmente, não mentira: quando toca ninguém fica parado. Haja Glamurosa em festa de 15 anos que não tenha visto dondocas e emos indo até o chão ou Piriguete protagonizando primeiros beijos.
O funk representava o que eu não podia ser. Não podia viver. To falando de funk porque tem toda uma questão sensualizada, mas acho que aqui cabe citar também o rap, para alguém criada nesse meio conservador era tudo o que eu tinha que evitar. E aí eu me mudei para São Paulo. Vim fazer faculdade. Tirei a aliança de compromisso (kkkkk), comecei a ir em festas, criei um grupo de amigas diversas, comecei a frequentar ambientes diferentes e conhecer novas pessoas.
E honestamente, eu não sei por onde começar. O funk que tocava quando eu entrei na faculdade era Show das Poderosas da Anitta ou Teoria da Branca de Neve da MC Mayara (que tive o privilégio de ver ao vivo num JUCA). Mas foi na faculdade que eu conheci a Isabella, que morava em São Caetano na época e estudava balé. Juro que isso vai fazer sentido. Por causa da região em que ela morava, ela estudava com meninas de Heliópolis. Ou seja, minha amiga da faculdade particular de jornalismo na avenida paulista que estudava balé foi quem me apresentou ao funk paulista. Te juro. E principalmente quem me ajudou a tirar o preconceito que eu ainda carregava. Toda semana ela chegava com uma música nova algo novo. Deixava uma música na minha cabeça. Sair e ouvir as músicas no rolê voltar pra casa e pesquisar sobre quem cantava e de onde vinham só me fez me interessar ainda mais.
Fiquei nessas de ouvir o funk que tocava em festa (monas o tanto que eu dancei MC G15, Livinho, MC Jerry, Bin Laden, Brinquedo, Tati Zaqui, MC Beyonce antes de ser Ludmilla, juro piadocas), mas chega um momento que fui percebendo que o “funk” que tava tocando era Biel, MC Gui e aí eu nem vou entrar na questão criminal ou polêmica deles, mas eu vou falar da origem mesmo. É óbvio que eu não ia me identificar com as letras de funk, minha origem é diferente da deles. E aí que me pega, foi algo que conversei com um amigo esses dias sobre esses ~funkeiros de origem, bem kkkkk o Biel nasceu em Lorena e é filho de advogada.
Corta para anos depois quando eu voltei a ouvir funk (pois é a vida é esquisita nossos gostos mudam e desmudam). O funk paulista foi mudando, o tuim foi chegando e eu comecei a colar em raves e festas com uma sonoridade diferente. A primeira vez que eu ouvi o álbum do DJ K eu achei que ia ter um derrame. E aí eu entendi que o que tava acontecendo era algo muito diferente. Para mim os álbuns do d.silvestre são alguns dos melhores álbuns do ano passado. A quantidade de músicas da Dayeh, Blakes, Caio Prince, Jeeh FDC, Thiago Martins e tantos tantos outros que passaram pelos meus ouvidos nos últimos anos é absurda. Primeiro porque a quantidade é impressionante. Segundo porque o que tem sido feito é mais impressionante ainda. É algo totalmente diferente. Confesso que isso me emociona muito, ouvir música totalmente diferente, algo que passe aquela sensação de “ok isso nunca foi feito, eles estão indo para um lugar totalmente novo, totalmente diferente, esse território nunca foi explorado - e é bom”.
O que tem reverberado muito na minha cabeça é - primeiro, entender que esse é zero meu lugar de fala então eu fico sentindo o tempo todo que eu tô invadindo um local que não me pertence - o quão importante o funk é como um movimento cultural e de pertencimento. Dia desses me vi assistindo minutos e mais minutos de vídeos no tik tok sobre a cultura de umbrella no funk e como eles são usados em grupos, com as marcas (começando com o bonde da Oakley - aliás tooooooooooda a questão da moda e funk que daria uma edição todinha da news), as identificações por trás do estilo de roupa, do que se veste e o que se usa para ir em um baile, qual marca é usada, o estilo, tudo isso, um símbolo cultural mesmo. E mais importante: ter orgulho disso, ter orgulho de pertencer.
Em uma sociedade extremamente preconceituosa e cada vez mais conservadora indo para um caminho família-tradição-propriedade ver um movimento cultural de resistência que vai contra o que as pessoas impõe como o que seria correto é um tanto quanto refrescante e inspirador. Ver essas pessoas com orgulho de suas origens, sem esconder ou sem mascarar de onde vêm, falando sobre suas realidades, o dia a dia, representando essas pessoas sempre escanteadas pela cultura e pelos artistas que dizem representar o país e a “cultura popular”.
Honestamente, música popular brasileira não é mais MPB. É funk, piseiro, rap, sertanejo. É tudo que toda em massa, nas casas, nas ruas. É o que domina e o que representa todas essas pessoas tão diversas. O funk representa isso, essas pessoas que ficaram escondidas todos esses anos e agora com a internet furaram a bolha, chegam em todos os lugares, na europa (é funk, não phonk pô), estados unidos, no mundo todo, lotam festas.
Se a gente já ouviu histórias da polícia encerrando rodas de samba (alô Delegado Chico Palha) lá em 1900 e bolinha e eram taxados de vagabundos, os rappers tomavam porrada da polícia nos anos 90 e eram taxados de, adivinhem, vagabundos e drogados, o funk agora encara tudo isso com uma repaginação: a fama de vagabundos, drogados, música “ruim” (sem comentários), de favelado, e aí nós estamos em 2025 discutindo a “Lei Anti Oruam”. Meu ponto sobre samba, rap e funk chega aqui: são todos estilos musicais que surgem em comunidades para falar sobre suas realidades sociais e culturais, sobre como vivem, como essas pessoas marginalizadas pelo governo, pela sociedade e pela cultura vivem, se divertem, para denunciarem, protestarem, para tudo. É representatividade, é resistência, é diversão. É pertencimento. Em 2023 fiz um vídeo falando sobre isso, você pode assistir aqui unindo as 3 exposições que falavam sobre isso e vi na época (Iboru, Origens do Samba e Uma História do Funk).
O funk - paulista, mineiro, carioca, tanto faz - tem se atualizado sonoramente. É bonito e curioso de acompanhar. E representa a verdadeira música popular brasileira. A cultura brasileira. Em todos os níveis e camadas e tudo mais. É a verdadeira representatividade social e cultural. Funk é Brasil. Ainda bem que eu aprendi isso.