#81 memória
eu sempre quis escrever minhas memórias.
Eu sempre quis escrever minhas memórias. Não que eu ache que minha vida tenha algo de muito incrível ou fantástico a ser contado, mas como um registro pessoal. Se depois viraria algo, coisas que a vida e a literatura diriam. Eu sempre quis escrever minhas memórias. Mas a minha memória não permite. Não consigo me lembrar das coisas. Eu sinto um pânico absurdo com isso. Não sei se é a ansiedade, a depressão ou todos os remédios que eu já tomei para tentar apaziguar. Mas não consigo lembrar.
Voltei a sentir isso lendo A Insubmissa da Cristina Peri Rossi. A maneira que ela escreve as memórias de sua infância no Uruguai mexeu muito comigo. Comecei a pensar em resgatar pedaços das minhas memórias de infância em Jundiaí - ou o que eu lembrasse e resgatasse de São Paulo. Não lembro. Mal lembro da adolescência, juventude e início da vida adulta. Tenho rasgos e arrombamentos em acontecimentos. Fico fazendo esforço para lembrar coisas de semanas ou meses atrás. Ao mesmo tempo lembro de detalhes sórdidos e datas específicas. Ou nomes e rostos de pessoas que já passaram e se foram daqui.
Quando meus amigos começam com “você se lembra de tal coisa da faculdade?” me vem um pânico. Eu não vou lembrar. Eu nem lembro direito como eu consegui me formar. São 4 anos que parecem um borrão de memória, de vozes, pessoas, gente indo e vindo, coisas que eu deveria ter aprendido.
O que eu queria mesmo era me lembrar e registrar mais pedaços da infância. Tenho lapsos tão recortados que são pedacinhos tão inhos de memórias que nem sei se podem ser considerados um acontecimento, se de fato aconteceram ou se eu inventei na minha cabeça. Sei que muito do que sou só sou porque vivi a infância daquele jeito, queria resgatar isso de certa forma. “Camila, faz psicanálise” (sim eu já to vendo todo mundo falando da infância de Lacan e da falta). Não é a mesma coisa. Eu faço terapia jungiana e acessamos isso sim, mas o que eu queria era esse registro literário.
(com 2 - ou 3 anos - ganhando meu boneco Roscotofo que existe até hoje, de quem? não sei e nem minha mãe sabe, mas meu pai deu o nome dele)
E por que literário? Fiquei matutando sobre isso. Eu poderia ir atrás de uma coisa mais biográfica e histórica, ou qualquer coisa do tipo. Mas eu acho que só a literatura é capaz de captar as nuances e a poesia do passar dos anos e da infância. A ingenuidade, o brilho no olhar, os sonhos, as brincadeiras - algo que Cristina Peri Rossi fez lindamente em A Insubmissa. Não precisa ter tudo, detalhe por detalhe, ou ser tudo extremamente verídico. Mas tendo a literatura, a poesia, capta a essência de como realmente foi, esse mundo diferente que não conseguimos mais acessar com a realidade adulta e capitalista que vivemos.
O que achei de mais bonito e interessante no livro foi como ela conta as descobertas da infância: ela se descobrindo mulher (nas entrelinhas, o que ela não podia fazer por ser mulher), a paixão pela literatura e escrita, o amor pelos animais (das coisas mais puras e bonitas!), a relação com a mãe que é uma aula de psicanálise para qualquer um e principalmente a descoberta da sexualidade de maneira tão singela e natural. As coisas acontecem com uma leveza e curiosidade que só uma criança pode carregar. O capítulo endereçado ao pai me fez chorar porque carrega também a dor de uma criança e o perdão de uma adulta - dois sentimentos complexos e puros, que ela conseguiu colocar perfeitamente em palavras.









É por isso a literatura e não a história, a biografia. Os fatos. Eu queria lembrar para transformar as memórias em literatura. Em poesia. Acho que talvez não seja uma necessidade de recordar em detalhes o que aconteceu, mas trechos, o que isso causou, recortes.
Li também O Amante de Marguerite Duras, que ela diz ser o seu livro mais autobiográfico. O mais. Claro que isso não significa ser 100% factual. Fiquei pensando muito no termo “autoficção”. No evento da Rosa Montero que eu fui um tempo atrás ela falou muito contra o termo “autoficção”, que é muito usado para falar de Annie Ernaux por exemplo (apesar dela mesma negar o título e dizer que é apenas narração).
Bom, sendo ficção uma obra criativa que é imaginária, inventada pela imaginação do autor, e se parte do que os escritores colocam em suas memórias é criado já que a gente não pode confiar 100% nas nossas memórias e criamos algumas coisas para preencher o que não lembramos, ou criamos coisas para proteger pessoas ou até para representar corretamente o que a gente quer passar, então acho que é sim uma forma de autoficção. Afinal é uma ficção de nós mesmos. Da nossa história.
Eu não sei se algum dia eu vou conseguir registrar minhas memórias. Reconta-las. Escrever o que aconteceu na minha infância e adolescência, no meu passado. Talvez o que a gente consiga seja pegar um recorte de um pedaço de verdade, o que pode ter sido. A nossa perspectiva do acontecimento, do que foi. Talvez a maneira de lidar com a frustração de não lembrar minhas memórias seja reescrever elas de outra maneira. Encontrar uma forma poética de lembrar esses recortes do que foi sem me ater aos detalhes factuais e mais ao que isso causou ou me marcou. Ou até mesmo criar algo para representar. Lembrar imaginações e sonhos. Sonhar minhas memórias e escreve-las. Não sei para qual motivo. Talvez para mim mesma. Para me lembrar.
Para ler livros que acompanham esse tema: O Amante de Marguerite Duras, A Insubmissa de Cristina Peri Rossi, O Perigo de Estar Lúcida e A Louca da Casa da Rosa Montero, qualquer livro da Annie Ernaux rs. nunca li Édouard Louis, mas sempre classificado como autoficção e semelhante à Annie Ernaux.
Fiquei pensando que uma maneira de reencontrar essas memórias seja olhando fotos e ouvindo meus antepassados. Minha mãe, meu pai, meu avô, meus tios. Revirar o armário de fotos, ler o que escreveram. Perguntar quais momentos foram esses. Recriar esses momentos de cabeça.
Deixar essa memória me inundar de certa forma. Ouvir o que eles tem a me contar. Em A Insubmissa, Cristina cria a própria história de sua família para preencher o buraco. Ela precisa disso para seguir sua história. Ouvir as histórias dos seus passados para construir a sua. Ver as imagens passadas para entender o que foi e ver o que será. Algo assim, não sei se está fazendo algum sentido.








