Para mim falar de Sylvia Plath - principalmente sobre seus Diários na última edição e A Redoma de Vidro nessa - é tirar o mito do suicídio. Lembrar da escritora que foi em vida e não apenas da história criada em volta de sua morte e depressão. É óbvio que esse é um tema que circunda toda sua vida e sua produção literária, é o grande assunto da Redoma e aparece em vários poemas, mas Sylvia tinha mais camadas. Inclusive, dentro desses temas.
Quando li os poemas de Plath fiquei com a sensação de estar lendo os poemas que ela escrevia em seu diário. Quase como se fosse algo que eu não devesse ler, suas confissões e poemas secretos, e escritos diretamente de sua alma. Ela mesma dizia que a poesia era diretamente da sua emoção, do grito do coração e dos seus sentidos. Por isso são tão viscerais e contemplam todos os sentimentos, dos melhores aos piores.
E suas poesias transbordam sentimentos, desespero, agonia. Sylvia confessa em seus versos suas angústias, dores e desejos. Principalmente o desejo de morrer, o desejo de amar. Em suas palavras, ouvindo o conselho de Anne Sexton e ainda muito jovem, ela encontrou sua linguagem e sua voz inovadora. Ser confessional era sua verdade. Ser extremista, ser intensa, era seu tom. Sua poesia era um processo terapêutico - no final do livro no texto final eles usam o termo “autoterapia” e acho extremamente apropriado. Sylvia usava sua experiência pessoal não para falar sobre si, num ponto de vista narcísico, mas para falar de algo maior, para falar da dor universal.
Os poemas de Sylvia nos faz lembrar que muitas vezes o sentido do poema não existe fora dele, mas dentro de seu mundo interior em diálogo com o mundo interior do poeta. Posso não entender as dores de uma mulher que perde a gravidez de seu segundo filho, mas sinto a potência de suas palavras e dentro de mim elas ressoam em algo que me emociona de forma diferente do que em outras pessoas. Sylvia usa sua história pessoal para compor poesias sensíveis, fortes, irônicas, viscerais e que dialogam intensamente com o leitor, independentemente de quem ele seja.
Ela usa de imagens inesperadas, flores, uma lírica ímpar, metáforas e uma infinitude de imagens para tentar encontrar palavras que representem o que se passava na sua cabeça. Parece que Sylvia busca na natureza e no desconhecido as possibilidades de palavras e analogias para representar sua mente inquieta e lírica. Olhar para o pequeno e transformar em beleza. O ritmo lento do cotidiano em velocidade de poesia. Suspender o presente em um ritmo próprio.
Sylvia falava da importância de se ler os poemas em voz alta. Na versão que eu li tinha a versão dos poemas em inglês também. Lia sempre os dois e depois uns trechos dele em voz alta. Gosto muito desse processo de poesia performance, de colocar em som a poesia, de fazer os sentimentos ressoarem. Encontrei por acaso no twitter hoje um perfil que reúne áudios de Sylvia declamando poesias com músicas ao fundo. Ouvir ela mesma declamando suas poesias é um privilégio monumental.
Curioso é pensar que Sylvia Plath era poeta e foi poeta sua vida inteira, mas sua obra mais conhecida é seu único romance publicado em vida, A Redoma de Vidro. Publicado em 1963 com o pseudônimo Victoria Lucas, pouco antes dela morrer, o livro é extremamente autobiográfico e inspirado no verão de 1952 que Sylvia passou na clínica psiquiátrica depois de tentar suicídio.
A Redoma conta a história de Esther Greenwood uma jovem estudante que vai trabalhar em uma revista de moda em Nova York durante um programa (lembra a história de alguém?) e durante esse período a então aluna exemplar e brilhante escritora começa a questionar seus desejos, vontades, sua vida e a cair em uma depressão. Esther se depara em um mundo pós guerra onde mulheres ainda não tinham vivido a revolução sexual, onde o dilema ainda seria trabalho e família, questão que percorreu a vida inteira de Sylvia. O livro pode ser tratado como um coming of age, uma história de juventude e amadurecimento, não apenas um livro de depressão e saúde mental, apesar desse ser o seu tema principal. É um livro que reflete o papel da mulher na sociedade enquanto esposa, reprodutora, profissional, solidão nas grandes metrópoles e a realização de sonhos. Pouco antes de sua própria tentativa de suicídio, Sylvia foi para Nova York passar 1 mês como editora convidada da revista Mademoiselle num programa de jovens talentos, algo muito parecido à experiência de Esther. Ao longo da primeira parte do livro vivemos um verão quente e pegajoso na big apple, sua relação com a colega aventureira Doreen. Em uma série de relatos, Esther relembra seu relacionamento com Buddy, seu namorado de Boston e quem ela acredita que eventualmente será seu noivo, a relação com os homens mais velhos como Lenny, que namora Doreen, e Marco, que tenta estupra-la logo no final de seu intercâmbio.
Ao retornar para sua casa e a convivência com a mãe, Esther começa a questionar sua identidade, sempre pautada na excelência acadêmica já que não foi aceita em um programa que gostaria de cursar. Com dificuldade de escrever e percebendo que nada do que a vida parece lhe propor é o suficiente (casar, ser mãe, terminar a faculdade, ser professora, etc), Esther começa a questionar seus desejos e quem ela é de verdade. Sua depressão causa uma insônia e o primeiro tratamento prescrito é eletrochoque. Depois de pequenas tentativas de suicidio, Esther tenta se matar tomando comprimidos (da mesma forma que Sylvia) e é internada em diversas clínicas psiquiatricas. Com a ajuda financeira de sua benfeitora do intercâmbio (novamente: lembra a história de alguém?), Esther conhece uma terapeuta mulher, Dra. Nolan, que volta a fazer o tratamento com eletrochoque. Com esse acompanhamento adequado, Esther finalmente vê algum resultado no tratamento. Ela define esse período depressivo como se ela estivesse presa em uma redoma de vidro, lutando para respirar. Quando o tratamento faz efeito, essa redoma é levantada e o ar entra e ela volta a respirar aos poucos.
Durante seu período na clínica Esther reencontra Joan, uma antiga namorada de Buddy que demonstra atração por Esther. Essa liberdade sexual faz Esther questionar e levar para sua terapeuta como ela inveja a liberdade masculina e o medo da gravidez - acho que é bom lembrarmos como a gravidez foi um ponto delicado na vida de Sylvia e que o livro foi escrito depois dela ter seus filhos. Com os cuidados de Dra. Nolan, Esther coloca um diafragma e se sente livre para experimentar sexualmente e sem a pressão de se casar com o homem errado. Os cuidados de Esther vão avançando com o acompanhamento de Dra. Nolan - juro, terapeutas mulheres!!! - e Esther começa a sair aos poucos, tem sua primeira experiência sexual, lida com questões delicadas como hospitalização, morte de um paciente da clínica, reencontro com Buddy e a perspectiva de sua vida pós clínica.
Acho que a maior sensibilidade e delicadeza do livro é justamente ser narrado em primeira pessoa. Como não temos diários de Sylvia do período que ficou internada, esse acaba sendo o relato mais próximo de como foi esse momento. Vamos acompanhando aos poucos a mudança sutil da jovem dominada pela depressão e pelos delírios. As imagens utilizadas por Sylvia para tentar explicar o que se passava dentro da mente de Esther são de uma beleza ímpar, como se estivéssemos lendo um longo poema em alguns momentos. Talvez a mais famosa delas seja a da figueira. O futuro que Esther enxergava era como uma figueira, sua vida tem várias possibilidades, ramificações e galhos. Na ponta de cada galho, um figo maduro, uma promessa de futuro. Um deles era ser escritora, outro casar e ter filhos, um viajar, outro acolá etc e tal. Esther se vê com fome, querendo tudo e sem saber o que decidir. A pressão para tomar uma decisão urgente a paralisa. O tempo passa, os figos apodreceram e caem aos seus pés já que ao escolher um, os outros ficariam podres e indisponíveis. Já diria o poeta Chorão, cada escolha uma renúncia isso é a vida. A questão é, nos anos 50, a mulher não tinha muitas escolhas já que tudo era muito imposto e cobrado pela sociedade e pela família. É por isso que Esther (e Sylvia) se sentiam tão sufocadas.
E a bem da verdade, é por isso, que até hoje todas nós nos sentimos tão sufocadas até hoje pelas redomas de vidro que pautam as regras sociais que querem ditar a vida e os corpos femininos.
O livro no fim não é apenas um livro sobre depressão e saúde mental. É um livro sobre amadurecimento, sobre decisões de vida, sobre ser mulher numa sociedade machista que quer decidir tudo sobre nossos desejos e corpos até o dia de hoje, sobre saúde mental e as nuances e dificuldades nos tratamentos dessas questões. Todas essas questões vão se enrolando em volta da personagem e das mulheres, não à toa Sylvia, Esther e todas nós vivemos sufocadas.
A descrição da depressão é uma das mais precisas que já li. Estar vazia, oca, calma. A sensação de estagnação, se mover pela vida como se fosse apenas levada por ela, sem saber como se chega ao final do dia. A insônia que te atravessa a noite. O cansaço que não te permite dormir. Eu sempre tive muita dificuldade para explicar a minha insônia. Como assim eu não consigo dormir se tudo o que eu sinto é apatia e cansaço? Sylvia Plath explica isso nas noites insones de Esther. No desespero em busca do sono. No desespero em busca de qual será sua vida, seu futuro. Por onde seguir. O que fazer a seguir. Entender o que você deseja de verdade, o que se passa no seu interior, quem você é. Acho que mais do que entender o que você não é, ou o que não deseja, é entender isso, o que você sonha, o que você quer, o que você deseja. É nessa fase que Esther se encontra, são essas angústias que a mantém acordada a noite. É tudo isso que sustenta de pé, caco por caco de vidro, fibra por fibra, essa redoma que a aperta todos os dias.
Me doi e me irrita qualquer análise que reduza Sylvia apenas a sua depressão e seu suicídio. Na pesquisa para essa newsletter cheguei a ler que Sylvia parecia ter dado o golpe de marketing perfeito. Morreu no auge de sua produção literária. Não há romantismo em doença mental, na morte por suicídio. Mesmo lendo, nesse mesmo texto, que o suicídio seria algo extremamente narcísico, eu não concordo. Depois de mergulhar em diários, poemas, suas memórias transformadas em prosa, vejo o suicídio como a maneira que Sylvia encontrou para lidar com sua agonia. Com sua dor, seu desespero. Não é apenas a morte por ser a mulher traída de um casamento falido. É a morte de uma mulher que não se adequava aos padrões impostos pela sociedade. De uma mulher artista, atormentada, com questões mentais, que buscava desesperadamente se encaixar em algo que foi imposto a ela, mas que não necessariamente era o que ela queria. Que amou e teve seu coração dilacerado. Que foi morar longe, em outro país. Afastada da mãe, órfã de pai. Que perdeu seu filho ainda grávida. Que é uma mulher que sente tudo intensamente, à sua maneira. Reduzir Sylvia à seu suicídio, à sua depressão, ao seu casamento, é apagar uma mulher extremamente brilhante, produtiva, com nuances e angústias e questões - e extremamente progressista em termos feministas se formos considerarmos a época que Sylvia escrevia.
Por fim, ganhei de aniversário os Diários em inglês da minha melhor amiga. Preciso criar coragem para ler Sylvia em sua língua materna. Tem algo sobre ler as pessoas na língua que elas nasceram e escreveram.
Até lá, sigo me encontrando embaixo de suas figueiras.
✷ÉCOUTERescutei
Ainda na pilha de Death Of An Artist emendei a temporada sobre o Pollock e Lee Krasner. Eu nem vou entrar tanto no mérito homens que só fizeram sucesso por causa de suas parceiras, mas eu fiquei genuinamente chocada em como eu não sabia nada sobre a história do Pollock. Óbvio que eu conheço, sei quanto vale um Pollock. E justamente um Pollock só vale o que vale hoje em dia porque Lee deu uma cartada de mestre depois da morte dele. O podcast fala muito sobre vício, saúde mental, sobre gênios criando, parceria, sobre levar aos limites, sobre o papel da mulher na sociedade e no mundo da arte, o homem artista - e a mulher artista. Recomendo muito muito muito ouvir, aprendi demais, não só sobre Pollock por quem eu confesso que nem tinha tanto fascínio, mas sua história para mim acabou sendo mais fascinante do que sua arte.
✷REGARDÉassisti
Assisti a Teen Apocalypse Trilogy do Gregg Araki esse final de semana e eu tô sei lá sentindo tudo. Confesso que dos três o que eu menos gostei foi Doom Generation. Totally Fucked Up é o melhor, mexeu tanto comigo em tantos pontos que eu genuinamente sinto que eu sou outra pessoa. Nowhere é uma obra prima. Eu estou sei lá…… Gregg Araki………..
Como pode entender tanto, capturar tanto. Fez tanto com tão pouco, tinha tanto a dizer e conseguiu com sua linguagem tão própria, tão singela, criar um universo e dizer tudo o que essa geração - e não só, esse universo de pessoas desesperadas para dizerem algo, ignoradas, escanteadas - precisava gritar para tentar ser ouvida. É isso viva os gays viva os lgtb viva todo mundo que não se encaixa. De certa forma tudo a ver com jovens que sentem demais e Sylvia Plath ok.









Até!